Cheiras ao caju da minha infância
e tens a cor do barro vermelho molhado
de antigamente;
há sabor a manga a escorrer-te na boca
e dureza de maboque a saltar-te nos seios.
Misturo-te com a terra vermelha
e com as noites
de histórias antigas
ouvidas há muito.
No teu corpo
sons antigos dos batuques à minha porta,
com que me provocas,
enchem-me o cérebro de fogo incontido.
Amor, és o sonho feito carne
do meu bairro antigo do musseque!
Antônio Cardoso
Recebi um email com esta provocação.
Não deve ter sido enviado especialmente para mim, mas eu, tagarela que sou, ao volante ou não, senti-me bastante visada.
O texto que acompanhava era tão simples como isto:
"Para os que apreciam bastante a combinação de mulheres maravilhosas e carros de sonho dos salões automóvel do mundo fora…"
Hoje acordei com esta canção no ouvido.
Se é uma homenagem à terra, uma saudade que vem sem avisar ou simplesmente a angústia do inverno, não consigo descortinar.
Mas a sensação é estranha e mais do que tudo tem que ficar registada
1 de janeiro de 2011
Estou no comboio, Porto – Vila Franca de Xira é a viagem.
Foi uma aventura ter vindo. Mas uma aventura com mais coisas boas para guardar do que o contrário.
Família e amizade são dois conceitos, são duas realidades captadas nesta aventura, encaradas apenas se for de coração.
Não há meio-termo para nenhuma delas. Há um balanço, talvez uma dúvida, que cedo ou tarde acaba por ser desfeita. Ou se é ou não se é. Ou se é absolutamente ou se deixa para trás.
Família? Vi com os olhos, senti com o coração.
Não que não soubesse. Não que a minha não tivesse já demonstrado, mas sim porque elevamos ou rebaixamos o nosso sem muitas vezes termos experienciado o suficiente além fronteiras.
Já tinha visto vários exemplos do que o conceito família implica. Este último quase implicou uma passagem de ano em plena estrada, no meio do nada. O que importa? Havia uma avó ansiosa, uma tia revoltada, um namorado paciente e uma amiga, num carro a abarrotar.
Não seria o fim do mundo se o champanhe (vinho Lambrusco, aliás, comprado por mero acaso) fosse aberto no meio do nada algures entre Viseu e Aveiro, onde tudo o que havia era o breu.
Não seria o fim do mundo, estávamos na passagem de 2010 para 2011 não para 2012. Mas ainda assim não seria o fim do mundo.
Nem acredito que isso estivesse em causa.
Há no entanto uma angústia no que toca à família, naquilo que ela provoca em nós.
Ela mostra-nos o quão impotentes podemos ficar.
No amor atribuímos culpas a um dos pares, choramos, largamos, pensamos que amamos outro e partimos para uma qualquer desilusão que apague a anterior.
Na família não há trocas ou substituições. Há forças irreconhecíveis, dribles inacreditáveis, sucessos inesperados e neste caso há a sensação de frustração a cada minuto e a desacreditação em tudo o que possa mostrar mudanças.
Desgaste e desalento poderão estar como lapas. Somos matéria. Somos voláteis, adaptáveis e incrivelmente capazes. Seres que se desfazem num sorriso ou numa lágrima, que cedem a uma palavra, a um apelo.
Família é um motor, difícil, pesado, brilhante por fora, complexo por dentro. É o motor que nos leva aos destinos mais desafiantes, aos píncaros e aos vales.
Mas é só por ela que tudo isso vale a pena. Filhos, pais, irmãos, netos, avós e muito provavelmente, no meu caso, primos e tios. Os que nos alegram e angustiam com a mesma facilidade com que um ser humano respira.
Aqueles que nos conseguem convencer mais do que qualquer outro que somos os melhores e os piores.
Mas também existe uma coisa chamada amizade. E, antes de saltar para esse outro fenómeno, arrisco dizer que Família é algo que se constrói, não bastam os laços de sangue. Não somos para a nossa família apenas porque estamos unidos pelo genoma, mas porque a sentimos!
“Toda a doutrina social que visa destruir a família é má, e para mais inaplicável. Quando se decompõe uma sociedade, o que se acha como resíduo final não é o indivíduo mas sim a família” Victor Hugo
O fenómeno amizade é outro que me intriga e ao qual dei atenção especial em 2010. Escolher amigos nunca foi tarefa difícil para mim. Quase tão simples quanto saciar a sede.
Ter amigos é até um acto bastante reversível, ainda que envolva alguma estratégia. Pôr e tirar amigos é fácil.
No meu caso pôr é bem mais complicado que tirar. É quase um casting mental. Estratificá-los por influência na nossa vida igualmente difícil, mas tão útil quanto separar talheres, roupas consoante a estação ou pastas de email.
A minha reflexão sobre a amizade só surge pelas dúvidas que tinha sobre mim mesma. Naturalmente, já tinha sentido o que a amizade nos pode dar. Os meus já tinham feito muito por mim. Haviam preenchido espaços, que desconhecia existirem.
Nos últimos tempos a questão que se colocava era: quantas vezes estiveste tu pelos teus amigos? Uma dúvida originada pela descrença ou o pouco à vontade demonstrado no momento de pedir um favor. Creio que isso só se deve ao facto de como amiga revelar-me pouco disponível.
Surpreendi-me com o que posso fazer e, de forma espontânea. Desconhecia que fosse capaz. Os últimos anos foram de grande lição.
Ter tido bons amigos, aos quais, confesso, só estar a corresponder agora, foi essencial para também o ser.
De tudo o que há de turvo, há a certeza de que em 2010 fiz uma conquista: envolver-me no fenómeno amizade.
Quantas mensagens posso ler desta noite atribulada de angústias, raivas e estupidez natural? Tantas quantas o bom senso for capaz de retirar, abdicando nunca do seu fio condutor: conceito Família, fenómeno amizade são mais fáceis de eliminar do que incorporar, mas isso seria como um concurso em que todos ganham, ou melhor, todos perdem.
(texto com algumas alterações a 2 de Janeiro)