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Pelas minhas viagens, de aqui e de ali vou-me perdendo com a certeza de que no fim da linha me encontrarei. Para quem gosta de aventuras e enigmas pode perder-se e encontrar-se por aqui
Estava a ouvir Lizz Wright e fixei a frase que uso como título.
Porquê? Simples!
Cada dia que passa e um obstáculo se coloca no meu caminho tenho alguém sorridente que me agarra e me puxa.
Estava descrente na boa vontade de cada um em Luanda. Não dos que me querem bem por natureza, não dos que me conhecem, mas do desconhecido que passa na rua e ou finge que não enxerga ou tenta passar por cima e muitas vezes consegue.
Mas um gesto simples surpreendeu-me e fez-me pensar nas mil coisas que correm mal e como podem ser dissipadas num minuto.
Estacionar o carro aqui não é coisa fácil.
Cheguei já era algo tarde. Fiz a manobra uma, duas vezes e ouvi uma buzina. Claramente o meu pensamento foi: "mais um impaciente, bolas!"
Enganei-me e muito.
A buzina era para sinalizar que estava quase em cima do veículo de traz.
Olhei e o condutor que buzinou foi me ajudando a fazer a manobra.
Disse: "Uau! Não acredito que há disto em Luanda"
Há sim... há mais. É preciso trilhar com calma.
Terreze... este é para ti. Pouco poético. Pouco inspirado, mas sincero e justo. De vez em quando (no meu caso muitas vezes) estamos sufocados e só vemos o mau e não vemos um pouco do bom que se nos apresenta com tanta boa vontade.
Por muitos radiadores que se me furem, carros em que bata, travões que me faltem e pneus que se me furem também!!! Ainda assim há uma estrela, uma lua, uma linha invisível cheia de luz, ou a comum palavra "sorte" que não me desampara.
Na sorte coloco os amigos, a família, a escrita que me liberta!
Este post fazia aqui falta... Agora vou ali e já volto :)
…continuação
Finalmente, sentiam-se preparados para dar o seu sábio parecer, muito pausadamente, ao Grande Chefe Pé-de-galo, que aguardava sentado junto deles.
Foi Pé-Sentado quem falou:
— Após cuidadoso exame às penas trazidas pelo pequeno Pé-de-atleta, concluímos que não são penas de ave.
O Grande Chefe mostrou-se surpreendido e perguntou, atrás de uma densa nuvem de fumo:
— Não são penas de ave?!
E o que são, então?
Desta feita, foi a voz do velho índio Pé-de-guerra que soou, muito misteriosa:
— São penas... de gente.
Quando a notícia foi dada ao pequeno índio Pé-de-atleta, duas luas e meia mais tarde, ele pôs-se a pensar e concluiu que a pessoa da tribo que parecia ter mais penas era eu mesma, índia Pé-Chato, que estou a contar-te como tudo se passou.
Na verdade, não pude estar presente na reunião em volta da fogueira onde as penas foram mostradas a toda a tribo. Fiquei de cama com febre e com uma pena terrível de não ir.
O pequeno índio veio, então, ter comigo ao pé do riacho e foi directo ao assunto, mostrando-me as penas:
— São tuas?
Eu não podia negar, eram mesmo minhas, embora me custasse acreditar que estavam ali, à frente do meu nariz. Então, abanando a cabeça em sinal afirmativo, respondi-lhe «lá» com o polegar esticado, como vi uma vez num filme de outra civilização.
Entendi que devia explicar ao pequeno índio o que tinha acontecido.
Peguei nas penas e comecei a contar-lhe:
— Trata-se de penas da alma. Sabes como é, quando se fica muito triste ou com muitas saudades, nascem-nos penas como estas, no fundo da alma.
— Estás a dizer que estas penas saíram mesmo da tua alma?! — admirou-se Pé-de-atleta.
—É como dizes — confirmei.
— Conta mais!— pediu ele.
— Bem, normalmente, as penas ficam cá dentro de nós. Só saem se alguém nos ajudar a deitá-las para fora, o que nem sempre é fácil — disse eu.
— E o que foi que tu fizeste? — tornou o pequeno índio.
— Falei com um dos mais velhos da nossa tribo que me disse assim: «As penas só te deixarão quando não tiveres pena de as deixar ir embora.» Na altura, não percebi bem o que ele me disse, mas resolvi afastar-me e ir até à montanha onde os veados costumam passear. Lá, pus-me a pensar, a pensar... Subi à rocha que está mesmo no cimo e dei um suspiro muito muito fundo até o pensamento ficar quase vazio.
Depois, deixei o ar ainda fresco da manhã entrar nos meus pulmões e, logo em seguida, as minhas penas começaram a sair e a subir pelo ar, muito devagarinho.
— Fala-me agora destas penas — pediu Pé-de-atleta.
Respirei fundo e fiquei a pensar se deveria ou não contar-lhe.
Depois, achei que sim, porque tinha sido ele a encontrar as minhas penas, que, afinal, tinham acabado por cair mesmo à frente do seu nariz arrebitado.
— Estas são todas penas de saudades, por isso são bonitas — disse-lhe. Mas achei melhor explicar: — Saudades das pessoas que já não vivem comigo porque partiram para o céu, e saudades também da minha irmã Pé-de-vento, que não vejo há mais de cem luas.
— Estás a falar daquela que está na grande cidade, a estudar para ficar a saber curar dores de barriga, constipações e comichões?
— Essa mesma, meu amigo. Ela está onde tem de estar. E eu fiquei com saudades, mas estou feliz porque sei que voltarei a vê-la! Somos amigas e, em muitas coisas, semelhantes. Havemos de reencontrar-nos. Agora, tenho essa certeza. Só ainda não sei o que vou fazer com estas penas... Não me passou pela cabeça voltar a vê-las.
Pensei que me tinha mesmo visto livre delas...
— Isso é fácil! Faz alguma coisa útil — sugeriu Pé-de-atleta, muito despachado.
— O quê, por exemplo?
Então, Pé-de-atleta deu-me uma resposta que, na altura, me pareceu meio disparatada:
— Olha, faz uns brincos!
— Essa ideia não tem pés nem cabeça! — refilei.
— As ideias não precisam de ter pés nem cabeça. Basta que sejam boas!
Franzi o sobrolho e murmurei longamente: «Huuuummm...» como ouço fazer aos anciãos da tribo quando ficam a pensar numa coisa importante.
Na verdade, a ideia de Pé-de-atleta, o pequeno índio, era boa. Só precisava de pô-la em prática, mas como?! Eu não sabia fazer brincos, nem pulseiras, nem sequer um anel de latão para o dedo mindinho!
Lembrei-me, então, de levar as minhas penas ao artesão da nossa tribo, o famoso índio Pé-Dali. Ele era o fabricante de tapetes de sela e o único artista que eu julgava capaz de transformar penas em qualquer coisa bonita para se usar.
Sem demora, fui ter com o artista.
Ele estava no seu tipi a fazer o desenho de um cavalo e quase nem deu pela minha presença. Entreguei-lhe as penas e pedi-lhe que fizesse com elas um par de brincos — os mais bonitos que ele conseguisse
fazer. Pedi-lhe também que não se demorasse, de modo a estarem prontos para o aniversário de Pé-de-vento, no segundo dia do sexto mês.
Porém, Pé-Dali não se despachou... Os artistas são imprevisíveis, sabes como é. Só agora tenho os brincos prontos. À espera de que Pé-de-vento regresse para lhos dar. Ela vai gostar. Ficaram lindos!
E pronto. A história dos brincos de penas está a acabar...
Todas as histórias têm um fim, menos a história da nossa vida — essa está escrita num livro muito grande (o maior do Universo), que só existe na biblioteca que há no Céu. Cá na Terra, ninguém teria tempo de o ler. Tu e eu também aparecemos lá, no grande livro. E, claro, aparecem também todas as outras pessoas do mundo — índias ou não. Porém, só Deus conhece esse livro de cor e sem precisar de o ler, porque sabe tudo.
Mas, antes de terminar, ainda queria dar-te a conhecer a conclusão a que cheguei: é que, afinal, sempre se pode fazer alguma coisa útil com as nossas penas quando elas não querem ir-se embora (porque há penas assim, um bocado teimosas, que querem ficar cá dentro a causar-nos tristeza). O meu tetravô Pé-de-nabo, que era um grande filósofo (que é como quem diz, gostava de pensar nas horas livres), dizia assim: «Se a vida te dá um limão azedo, junta-lhe água e açúcar e tens uma limonada!»
Boa ideia, não é?
FINAL
Maria Teresa Maia Gonzalez
A História dos brincos de penas
Lisboa, Editorial Presença, 2006
Por Clube das Histórias
…continuação
Porém, o índio Pé-de-dança, o actual mestre-de-cerimónias da tribo, também quis dar um ar da sua graça. De facto, parecia-lhe mal não dar a sua opinião sobre o que quer que fosse, mesmo que não tivesse certezas. Afinal, ele era o mestre-de-cerimónias, com o curso completo, e não um ignorante qualquer!
Bamboleando-se, Pé-de-dança opinou na sua voz de falsete:
— Pois para mim são penas de pavão.
— Pavão?! — insurgiu-se o índio Pé-Coxinho, que até se levantou, procurando a custo equilibrar-se. E repetiu, incrédulo: — Pavão?!
Pé-Coxinho tinha ficado com o pé esquerdo sob a roda de uma carroça, quando era pequeno. Desde então, não voltara a pôr o pé em terra e era campeão em muitas gincanas que a tribo organizava na Primavera, convidando outras tribos a participar — uma espécie de olimpíadas cem por cento índias, com modalidades absolutamente únicas e extraordinárias, nas quais o primeiro prémio era a cobiçada Seta de Ouro. Pé-na-tábua, o condutor mais rápido do Oeste, levantou o braço, pedindo para falar.
Os outros calaram-se e ouviram-no afirmar:
— Concordo com Pé-Coxinho. Não podem ser penas de pavão. Eu acho que são penas de pombo. Já vi umas assim numa revista, numa das viagens que fiz. Tenho praticamente a certeza de que são de pombo, sim.
Ninguém partilhou da opinião de Pé-na-tábua, o condutor de carroça mais veloz e experiente da tribo Sempre-em-pé, que nunca tinha atropelado nem sequer um escorpião.
Depois de a opinião de Pé-na-tábua ser rejeitada por maioria, levantou-se a índia Pé-Firme, mulher do Chefe. Pé-Firme era rechonchuda e forte como um guerreiro, sendo igualmente destemida. Era perita em luta corpo a corpo e nunca virava costas a uma
briga. Usava sempre ao pescoço um colar de dentes de tubarão que o marido comprara a um vendedor ambulante que por ali passara, vindo de um país longínquo.
Ora, a mulher do Chefe não perdia uma oportunidade para se fazer ouvir nas reuniões da tribo. Era, sem dúvida, uma mulher sem papas na língua, que é como quem diz, capaz de dizer tudo o que lhe vinha à cabeça, além de ter uma voz parecida com um trovão dos maiores. De resto, alguns dos homens da tribo tinham a voz mais fina do que a dela,
embora não o quisessem admitir.
Pé-Firme falou:
— Ninguém aqui se entende! Ninguém sabe o que diz! Então não se está mesmo a ver que as penas são de águia?! De que outra ave poderiam ser, se são as águias que mais cruzam os céus por cima das nossas cabeças?
— Não posso concordar com Pé-Firme — interveio Pé-de-chumbo, afastando da testa uma madeixa de cabelo que o incomodava.
Pé-de-chumbo era o pior dançarino de toda a tribo e, certamente, das tribos mais próximas, mas não desistia de tentar, convidando para dançar todas as mulheres que conhecia — desde as mais novas e bonitas às mais velhas e enrugadas.
A mulher do Chefe olhou-o com cara séria, mas ele não se intimidou e explicou:
— As penas de águia são maiores do que aquelas que o pequeno Pé-de-atleta trouxe consigo. Para mim, são penas de condor.
— Com dor fiquei eu depois de dançar contigo — atalhou a índia Sem-Pé, que levara uma pisadela terrível do índio Pé-de-chumbo, numa festa para comemorar uma boa chuvada que caíra do céu para o bem de todos, depois de uma seca prolongada.
Sem-Pé era muito baixa e refilona, falando sempre com o dedo indicador bem espetado no ar. Não suportava que alguém lhe pisasse os calos (que lá eram muitos). Por esta razão, andava sempre de botas, mesmo no pino do Verão.
Chegou então, muito atrasado, Pé-ante-pé, o índio mais preguiçoso da tribo, que se deixara dormir.
Estava realmente embaraçado e sentou-se em silêncio. Quis passar despercebido, mas o Chefe perguntou-lhe o que pensava das penas que Pé-de-atleta tinha na mão.
Depois de olhar para as penas, Pé-ante-pé lá se manifestou:
— São de ganso. É isso mesmo: são penas de ganso-selvagem.
— Ganso-selvagem? Que ideia! Parece que nunca viram um ganso-selvagem! — indignou-se Pé-na-argola, que sonhava ser juiz, mas raramente lhe pediam a opinião.
Depois, ao ver que todos os olhares estavam postos em si, empertigou-se e ajeitou o colar de ossos de galinha que pertencera ao seu pai.
Por fim, tossicou e disse de sua justiça, alto e bom som, em tom quase solene:
— As penas que o pequeno Pé-de-atleta encontrou só podem ser de uma ave: a perdiz.
— Peço a palavra — disse o índio Pé-Sujo, levantando-se. Em seu redor, os companheiros fizeram caretas que nem se deram ao trabalho de disfarçar.
Na realidade, Pé-Sujo dormia sempre ao relento e odiava tomar banho, só o fazendo no dia do aniversário do Chefe. As suas roupas também não eram lavadas há muito tempo e estavam cheias de nódoas de toda a espécie. Por causa disto, ouvia insultos e protestos todos os dias, de mulheres e homens, jovens e crianças. Porém, ninguém conseguia arrastá-lo até à beira do rio para o fazer mergulhar na água ou, pelo menos, lavar os pés.
— Quanto a mim, são penas de avestruz — disse Pé-Sujo, que nunca tinha visto aquela ave, mas quis meter a sua colherada.
— Avestruz era a tua avó — gritou-lhe o índio Pé-Leve, campeão de corrida com obstáculos, que usava sempre ao peito o colar com a medalha que ganhara na última competição contra as tribos vizinhas dos Cabeças-Duras, Mãos-Largas e Narizes-Empinados.
Pé-Leve era também quem mais embirrava com Pé-Sujo, passando a vida a chamar-lhe a atenção e a mandá-lo tomar banho.
Por fim, acrescentou, na sua voz de cana rachada:
— Vê-se logo que são penas de gaivota.
— Uma gaivota deves ser tu — comentou o índio Pé-em-riste, com voz de poucos amigos, levantando e abanando o pé onde trazia uma colecção de pulseiras coloridas compradas numa feira muito conhecida.
Depois, continuou: — Desde quando é que há gaivotas no céu da nossa tribo, que fica a léguas do mar? Não podem ser penas de gaivota!
A não ser que alguma se tenha perdido do bando e tenha voado até aqui, atraída pelo perfume do Pé-Sujo...
A discussão estava ao rubro. A confusão era mais que muita. Todos gesticulavam e abanavam as cabeças. Uma criança de colo acordou e desatou num berreiro ensurdecedor. Os cavalos da tribo relincharam, agitados.
O pequeno índio achador de penas estava decepcionado. Não conseguia descobrir a quem pertenciam, afinal, aquelas penas que tinham descido do céu mesmo à frente do seu nariz. Ninguém parecia saber, de facto, de onde tinham surgido as penas.
A certa altura, o Grande Chefe Pé-de-galo chamou os seus três conselheiros, todos de cabelos brancos como a neve: Pé-prá-cova (que tinha 90 anos), um seu companheiro de muitas lutas chamado Pé-de-guerra (que já fizera 98 primaveras) e, finalmente, Pé-Sentado (o mais velho de todos, com 103 anos de vida), que sofria de joanetes e só por essa razão raramente saía do seu tipi.
O Grande Chefe quis saber a opinião dos mais velhos e pediu-lhes que, quando tivessem novidades, o avisassem.
Por fim, Pé-de-galo deu por encerrada a reunião, mandando que lhe trouxessem o cachimbo da paz para que ninguém saísse dali zangado.
Então, antes de se retirar, quis que fosse servido um chá de ervas calmantes, para todos irem dormir tranquilamente, ao som dos uivos dos lobos, já que era noite de lua cheia.
Depois de muito pensarem (demoraram o tempo que a lua levou a mudar três vezes de fase), os conselheiros reunidos no tipi do Chefe passaram o cachimbo de mão em mão entre os três, enchendo a tenda de fumaça.
Então, lentamente, abanaram as cabeças para cima e para baixo e cantaram baixinho e muito devagar uma canção que tinham aprendido na infância, Atirei o pau ao coiote.
…continua
Por Clube das Histórias
Eu, índia Pé-Chato, da tribo dos índios Sempre-em-pé, vou contar-te esta história que se passou comigo, embora não pareça ser verdade.
Bem, é claro que algumas coisas não se passaram exactamente como aqui vão contadas, mas é assim que me lembro delas.
Sei que gostas de histórias, sobretudo à hora de dormir, então aqui vai uma para te fazer sonhar.
É a história de... um par de brincos tão especiais que não há outros iguais no mundo inteiro! Ora presta atenção...
Não vou começar por «Era uma vez», porque já ouviste muitas histórias que começam assim e não gostas de repetições. Cá vai então...
Estava um dia muito luminoso. Era o início da Primavera, estação radiosa na verdejante planície da Águia Tonta.
Todas as coisas criadas por Deus brilhavam de forma especial naquela manhã.
O pequeno índio Pé-de-atleta levantou-se bem cedo como é seu costume — especialmente no tempo quente — e pôs-se a correr pelo vale entre as montanhas cheias de rochedos e árvores tão antigas como o tempo.
Lá foi ele, tropeçando, aqui e ali, em caricas de Coca-Cola e caixas de Chiclets vazias (que o velho Oeste já não é o que era, por causa daquilo a que chamam progresso).
O pequeno índio costuma fazer exercício todas as manhãs, porque o pai, o índio Pé-Grande, lhe disse que só assim ficará alto e forte como ele (convém dizer que o índio Pé-Grande pesa mais de 100 quilos, todo nu, só com o colar de dentes de jacaré ao pescoço).
Ora, a certa altura, Pé-de-atleta parou um pouco para descansar e recuperar o fôlego. Foi então que viu cair, mesmo à frente do seu nariz arrebitado (o único nariz arrebitado da nossa tribo), seis pequenas penas de cores diferentes que, estranhamente, poisaram aos seus pés com toda a suavidade.
Pé-de-atleta baixou-se, recolheu as penas com cuidado para não as estragar e, de novo em pé, pôs-se logo a olhar para o céu…
Nem sombra de ave, qualquer que fosse! Nem condor, nem águia, nem abutre.
O pequeno índio voltou a olhar para as penas que tinha na mão.
Eram bonitas! Seriam mesmo de pássaro como pareciam? Talvez fossem penas de anjo, mas, segundo ouvira o professor Pé-Calçado dizer, as penas de anjo são sempre brancas — mais ainda do que a neve que cobre as montanhas no Inverno —, brancas e muito brilhantes, como se tivessem o Sol lá dentro. Já o vigilante da escola, o índio Pé-Descalço, garantira que os anjos maus tinham penas pretas, mas ninguém ligava muito ao que ele dizia. Na verdade, a sua ambição era ser o curandeiro da tribo, mas tinha ficado desclassificado no concurso por ser tão ignorante que não sabia distinguir uma gota de veneno de serpente cascavel de uma lágrima de crocodilo…
Pé-de-atleta voltou a olhar o céu com toda a atenção como quando seguia o voo de um papagaio de papel que escapara das mãos de um menino da grande cidade, ou quando procurava descobrir uma estrela nova. Porém, nada avistou. Nem ave nem anjo voavam por aquelas bandas naquela manhã.
Intrigado, o nosso amigo guardou as penas e dirigiu-se para a aldeia.
Pela altura do Sol, viu que já eram horas de se apresentar no tipi (nome dado a uma tenda índia) da sua tia Pé-de-meia.
Bem se lembrava de que a tia Pé-de-meia prometera dar-lhe um colar de dentes de urso (já usado) quando ele completasse dez anos de idade, o que acabara de acontecer, na véspera.
Uma promessa é uma promessa! Um índio sabe que deve cumprir o que prometeu.
E Pé-de-atleta lá foi, apressando o passo, de cabelo ao vento, entre voos de insectos coloridos.
A tia Pé-de-meia estava sentada confortavelmente dentro do seu tipi.
Via-se que estava concentrada a coser uma manta muito velha que já tinha dez remendos e cheirava a tantas coisas que atraía coiotes e lobos, mesmo que passassem a
grande distância.
Curioso sobre o seu achado, o pequeno índio resolveu perguntar-lhe se ela sabia a quem teriam pertencido as penas que trazia consigo.
A resposta da tia Pé-de-meia não se fez esperar.
— Ao Tio Patinhas — disse ela, para quem o Tio Patinhas era o pato mais interessante de que ouvira falar. De facto, ele era o ídolo que tanto desejava conhecer, por ser quase tão poupado como ela.
Neste momento, entrou no tipi da tia Pé-de-meia o índio Pé-de-salsa, ajudante do cozinheiro do Chefe da tribo, que vinha trazer uns biscoitos que o cozinheiro Pé-de-porco fizera. Pé-de-salsa ouvira a resposta da tia Pé-de-meia e deu logo a sua opinião: — Toda a gente sabe que as penas do Tio Patinhas são brancas. — Então, pensou um pouco e acrescentou:— Eu digo que são penas de falcão.
Cada vez mais intrigado, o pequeno índio Pé-de-atleta agradeceu à tia o presente que recebera: o colar (muito usado mas ainda com três dentes em bom estado, os restantes estavam cariados ou partidos).
Em seguida, provou um biscoito e despediu-se.
Depois, foi para o seu tipi esperar pela hora da reunião da tribo à volta da fogueira. Nessa altura, segundo esperava, iria satisfazer a sua curiosidade porque algum dos mais velhos haveria de saber dar-lhe uma resposta clara. Os mais velhos sabiam coisas incríveis — até os nomes das estrelas, que eram mais do que todos os antepassados da tribo juntos!
O feiticeiro da tribo estava de férias, numa praia do Brasil. Assim, quando a noite caiu — catrapuz! — sobre a aldeia, o ajudante do feiticeiro, o índio Pé-de-escuteiro, foi buscar lenha e fez a fogueira com todo o rigor, como só ele sabia fazer.
Quando já se via uma bela chama a sair dos ramos, Pé-de-escuteiro abanou a cabeça para cima e para baixo, satisfeito.
A fogueira estava magnífica, digna do índio mais exigente do planeta!
Então, pôs-se a cantar para chamar toda a gente.
Como cantava alto e francamente mal, todos vieram a correr, como sempre, para evitar que caísse sobre a aldeia uma carga de água pesada, acompanhada de raios e trovões. Na realidade, essa calamidade já acontecera porque nem as nuvens suportavam tal cantoria!
Reunidos à volta do fogo, todos começaram por ouvir os mais velhos dizer mal do reumatismo, da tribo Pés-na-terra (grande rival nos jogos e nas lutas) e do seu chefe, o terrível Ponta-Pé.
Em seguida, Pé-Direito, o curandeiro, mergulhou um dedo em mercurocromo e fez dois riscos na cara. Depois, fechou os olhos. Via-se que tinha entrado em grande concentração.
A certa altura, levantou-se e apresentou a sua dança especial para reuniões, ao som de uma cantiga cuja letra só ele sabia, porque lhe tinha sido ensinada pela sua bisavó Pé-Atrás (que pertencia a uma tribo que falava outra língua). De qualquer maneira, segundo parece, tratava-se de uma canção sobre a melhor maneira de fazer uma bebida mágica à base de gengivas de escaravelho, pestanas de lagartixa e unhas de bisonte, com muito piripiri, seiva de cacto e água-pé. Uma bebida para animar os adultos mais tímidos nos serões da tribo.
Depois da dança, fez-se silêncio. Então, o pequeno Pé-de-atleta levantou-se e pediu a palavra para perguntar, mostrando as penas, se alguém sabia de onde teriam vindo. Explicou que não tinha encontrado uma única ave no céu, naquela manhã, o que até podia jurar meia dúzia de vezes, depois de cuspir na mão esquerda e cortar a unha de um dedo do pé, se fosse mesmo necessário.
O primeiro que ali deu a sua opinião foi o índio Pé-de-cabra, que já tinha estado preso por roubar cavalos à tribo vizinha.
Este índio ambicionava entrar num anúncio de televisão a uma marca de cigarros muito famosa, mas, na verdade, não tinha cavalos que o fizessem brilhar como gostaria.
— São penas de faisão — disse Pé-de-cabra, com ares de entendido, atirando a trança para trás das costas, de rompante, fazendo rir a sua mulher, Pé-no-chinelo.
— Qual quê?! — atalhou a índia Pé-de-galinha, que era, juntamente com a sua irmã gémea, a mulher mais velha da tribo e que já via mal (mesmo com a sua inseparável lupa). — Bem se vê que são penas de abutre. — E, em seguida, perguntou à irmã (que tinha vivido em França e era conhecida por Pied-de-poule): — O que é que tu dizes, mana?
A outra mirou e remirou as penas que o pequeno índio lhe foi mostrar e, depois de as aproximar da ponta do nariz, deu uma resposta esclarecedora, na sua voz roufenha:
— Nem mais!
continua…
Tenho recebido estas histórias no meu e-mail.
Já enviei vários outros a perguntar qual a intenção, propondo até algo como uma parceria. Mas os senhores respondem-me com mais histórias. Assim resolvi ir postando as historinha aqui mesmo.
As histórias surgem no âmbito de um programa chamado "Abrir portas ao sonho e à reflexão"
A Gata e o Sábio
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